terça-feira, 28 de abril de 2015

Bom dia, Vietnã!!! - Quando os soldados são forjados na Serra -


" Foi quando se manifestou do nada o lado brilhante e instintivo que alguns montanhistas têm. Lembro até hoje: Tínhamos pouca visibilidade, o GPS não dava o sentido correto da trilha, andando em gangorra com as mochilas cada vez mais pesadas e não encontrávamos a trilha certa. Então segue  um minuto de silêncio. O Papael, praticamente possuído, vira para a sua esquerda, pronuncia um estrondoso "Chega!!!",  abre 3 metros de quiçaça e cai exatamente na trilha, em frente à fita que claramente indicava que ali era a crista do Caratuva. Algo que considerei praticamente sobrenatural dada a altura que já havíamos percorrido desorientados pelos rios."    

 Esse texto foi escrito por Fabio Sieg, um dos idealizadores da Travessia Triangular Menor do Ibitiraquire. Realizada em Abril de 2014

     Qual ideia deve ser o centro de um relato acerca de uma travessia pela imponente e desafiadora Serra do Ibitiraquire? Possivelmente essa ideia central seja o sentimento.
     Desafiando 15 cumes, 4 amigos, que se conheciam poucos meses antes, em 4 dias, ensinavam lições à própria fé, fazendo por si, cada um, o esforço máximo não só para o sucesso, mas para a felicidade e união de um grupo.
Esse relato é parte de como nasciam, naquela época, um grupo montanhístico chamado "Os Loucos do Ibitiraquire".
     O primeiro sentimento que temos nessa experiência é o do contato com o novo. Lembro que conversamos pouco pela internet, tão logo surgiu a ideia de fazer a loucura de sair da Fazenda Pico Paraná, cruzar todas as montanhas da serra e bater uma espécie de “31 meu” nas placas do Ciririca. E tínhamos, para isso, o feriado de Páscoa e uma grande vontade de fazer a proeza acontecer.
     Poucos relatos, principalmente dos montanhistas mais experientes da serra, mostram os bastidores das trips quando se configuram por meio da internet entre desconhecidos. Era o nosso caso...
    O Papael Kozechen era o cara são da turma (por ai dá para ter uma noção de que a coisa não estava boa), sua grande experiência permitia que o mesmo nos chamasse de loucos e insanos quando íamos propondo absurdos de tamanha pretensão em tão pouco tempo. De tão pessimista, digo: “realista”, chegou (em suas próprias palavras) a ser meio chato, mas se redimiu mostrando ser um grande líder e um amigo muito especial na hora de materializarmos o nosso combate daqueles dias de Abril, majorando o respeito que adquiriu, ao longo dos anos, como montanhista.
     O Adilson Cypriano era o idealizador da parada. Eu lembro que já naquela época ele era o mito do facebook, era o cara que vinha lá de São Paulo agitar as Trips aqui no Paraná. Eu o conhecia por uma dessas investidas no Marumbi. É uma cara que para sempre vou considerar muito, seja pelo amor, respeito e admiração que tem pelas montanhas ou então pela habilidade que adquiriu para permitir que a esposa lhe libere para isso (ele mesmo sempre fala disso, rsrs)
     Gabriel Good Neto só dava risada, apesar da anarquia, sempre foi a parte otimista do grupo: o piá novo, resumindo e estampando por fora tudo aquilo que todos ali eram por dentro. Fazia as coisas ficarem leves por meio do seu grande carisma, que misturado com sua pouca idade (comparados aos velhos aqui), fizeram dele o mais atazanado em todo o caminho.
     Existem outros nomes. Alguns dos que estão entre os "Loucos" ajudaram durante a logística, pois os perrengues da vida não possibilitaram as suas participações efetivas. Cito o grande André, cara guerreiro que poupou seu joelho lesionado por recomendação médica e o Kelvin, que iria apanhar em casa se embarcasse nessa. (Brincadeira, o Kelvin foi um grande parceiro e um dos idealizadores da aventura, mas tinha compromissos inadiáveis naquela Páscoa e deixou claro desde o começo, sendo sua atitude de colaborar, mesmo não podendo ir junto, muito louvável).
     Bem, eu sou o Fábio Sieg e sei lá o que eu fazia ali, só sei que eu tinha uma fé inabalável que iriamos conseguir, fora isso eu tinha umas garrafas de 5 litros de água, um gênio meio porra louca, papel e caneta na mão.
     O primeiro contato que tive com o Papael foi no Clube Paranaense de Montanhismo.
     Ahhh!!! Bem legal, um louco que subiu a Cadeia de montanhas do Cerro El Plata, na Argentina, com apenas 20 reais e ia dar uma palestra sobre o direito de ir e vir.
     Cara, o surreal começava ali, estava numa espécie de templo de loucos por aventura e o cara que foi declarado o sumo pontífice da montanha, em pessoa, era quem proferia a missa. Era um louco e ganhou imediatamente respeito e consideração suficiente para irmos ao boteco planejar toda a parada.
Naquele dia também conheci o Good: diretamente de Mafra/SC para o mundo, Gabriel Good veio de lá para assistir a palestra do Papael. Cara de adulto sério, se tornou lenda dos comentários virtuais e bastante comentado no dia pelos outros CPMs. Gente boa demais, apesar da cara de bandido homoafetivo.
     Éramos nós três num bar, o Kaes, no bairro Cabral em Curitiba e mais duas moças, a Andressa Zanlorenzi e a Lia Pereira, que saíram do Clube conosco e já tinham andando por diversos lugares e escalado um monte de coisa, ou seja, tínhamos muito assunto. Estávamos os 5 lá, papeando.
     E por falar em papear, eis que o Papael abre uma carta topográfica na mesa e deixa de ser pessimista e entra na onda. Fala daqui, fala de lá, mostra uma trilha daqui, uma trilha de lá e pronto. Já tínhamos uma prévia de que estávamos sendo meio retardados de tentar fazer a trip apenas com aquele pouco tempo e um par de pernas. Teríamos que ter logística para não morrer e nos tornarmos um exemplo do que não deve ser feito.
     Um dos grandes pontos positivos daquela conversa foi que, a partir dela, orientamos melhor as coisas e estávamos com os pés mais no chão. Acabando assim com o "fuzuê" que estava virando os planos no Facebook. Planejamos necessidades: enterrar comida e água nos caminhos, pois o peso seria um dos grandes rivais da empreitada.
     Foram dois pontos alvos de nossos planos. Enterrar comida no Cerro Verde, e assim fitarmos o caminho até lá, que na época era bastante complicado, pois umas chuvas reconfiguraram a vegetação meses antes. O mesmo precisava ser feito no Itapiroca. Dessa forma, enterrando água e comida, teríamos que carregar, por baixo, uns 20 quilos a menos durante o trajeto.
     Os primeiros ataques foram feitos pelo Papael e eu. Num dia relativamente bonito fitamos umas correções no Itapiroca, pois até ele estava meio alterado em função de algumas quedas de árvores, e nos direcionamos ao Cerro Verde. Lembro que na época ganhamos muita confiança, pois era um trajeto que havíamos planejado fazer para dormir, levando, inclusive, barraca e fogareiro, mas não foi necessário. Era praticamente uma hora da tarde e a missão já estava completa.
     Naquele dia encontramos, por coincidência, o Alexandre Pizollato, um dos Loucos desde aquelas épocas. Ele voltava com a namorada, nos disse que o caminho estava muito tortuoso. Tentou atacar o Ciririca por cima e falhou onde, inclusive, temíamos a nossa falha. Na época descobrimos uma trilha secundária que enganava o povo ali e fitamos imediatamente a entrada correta para o caminho ao Cerro Verde, quem sabe a grande sacada do dia.
     Deste dia veio a grande primeira lição. “Esforço”, esse é o amuleto da sorte. Fazer aquele trabalho antecipado nos permitiu ter uma visão ampla e uma aproximação com a totalidade do que enfrentaríamos. Mais à frente, já nos dias de travessia, foi decisivo e determinou o sucesso da Trip.
Voltamos, já escurecendo, pela Fazenda da  Bolinha, onde pedi resgate para uns colegas.
     Retornando muito confiantes e já sabendo que conseguiríamos, foi um dia de ótimas lembranças e de muitas risadas, grandes histórias de aventura e de piadas fracas do grande amigo Papal.
     O segundo ataque fiz sozinho. Uma noite chuvosa daquelas em que é melhor enfrentar a natureza do que algumas saudades. Por coincidência, dessas muitas, encontrei o André, acampado com sua Azteq Nepal lá na Fazenda Pico Paraná. Quando soube que eu ia para o Itapiroca ficou meio assustado em função da previsão de chuva. Mas recomendações, boa sorte, e fui! No caminho, tão logo passei a bica, a chuva não permitia mais andar em meio aos galhos e a temperatura começou a baixar abruptamente, decidi abandonar a carga, escondida no caminho, e descer até a casa base. Era hora de ser prudente. Lá, dormi e tão logo o dia nasceu encarei a missão que já no dia anterior eu havia iniciado.
     Com a luz do sol e menos chuva, subi nossa carga e enterrei uns 7 quilos de comida e um galão com 5 litros de água, um ao lado do outro, em meio ao bosque que segue entre o cume falso e o verdadeiro do Itapiroca, sentido Cerro Verde.
     Encontrei o dono de uma marca de roupas fazendo making fotográfico, apesar do dia meio feio. Conversamos muito e ele achou bacana a ideia da Trip. Descemos com um outro colega até o cruzo. Não aguentei, subi o PP para dar aquela energizada e desci chegando bem tarde em casa e cansado pacas. Dormi como em nenhum dia daquela semana.
Umas semanas depois fomos novamente eu e o Papa fitar do Caratuva até o Taipa, um trecho que estava bem pior do que aquele fitado no mês anterior. Com tempo excelente não tivemos dificuldades além do sol forte.
     Isso mostra que a Trip começou muito antes dos dias de caminhada oficiais. Fomos dignos já pelo esforço que antecedeu, usando ao máximo o senso lógico e prevendo situações que poderiam surgir. Mas nada na vida é perfeito, algumas falhas ocorreram e muito aprendemos com elas.
Chegou o feriado de Páscoa. Combinei com o Good Neto para ele pousar lá em casa. Ele mora em Mafra e eu não deixaria um amigo desse pagar hotel desnecessariamente. Avisei minha família da situação e todos dormiram armados até os dentes, esperando pelo pior, que não aconteceu. Brincadeira. Fizemos os últimos ajustes no GPS, nas mochilas e fomos dormir meio tarde para no dia seguinte partir.
     Pegamos o Papael no caminho, que logo já começou a contar piadas, se abriu todo ao ver o Good e deu espaço para que a zueira não tivesse mais fim. O Adilson estava um pouco a frente, no posto próximo à Fazenda da Bolinha. Era tanta chuva que antecedeu aquele começo de outono, lá por meados de Janeiro, que a estrada até essa fazenda havia sofrido erosão completa em um trecho e os carros não passavam mais, a partir de uma parte dela.
A icônica
     Ali deixamos o automóvel dele e fomos com o que eu dirigia, já arrumadas as mochilas, até a Fazenda Pico Paraná onde oficialmente a aventura começaria e arrumaríamos as mochilas mais uma vez como uma noiva faz com seu vestido na véspera do casamento.
     Uma neblina dava a cara de Abril para o dia e apostamos nas boas previsões do tempo para aos próximos dias, que na verdade nem eram boas. Subimos o Getúlio batendo papo, tirando foto e por ironia comentávamos que o primeiro dia seria o mais fácil. Os planos eram subir o Caratuva, deixar a carga, atacar o Taipabuçu e retornar até o A1 em direção ao Pico Paraná. O tempo começou a firmar e isso incentivou muito o grupo.
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     Após atacarmos relativamente bem o Taipabuçu, subimos novamente ao Caratuva e percebemos que seria, em função do tempo, inviável chegar ao A1 com aquelas mochilas. Decidimos entrar mata à dentro utilizando a inóspita trilha da conquista para acelerar os passos e possibilitar a manutenção dos planos.
     Então, o dia que era para ser o mais fácil tornou-se o mais difícil.
     Nos perdemos, durante cerca de uma hora, sendo desorientados pela névoa, a falta de luz e  por dois rios que se formam logo no vale que segue ao A1. O GPS não colaborava, a neblina ficou extremamente densa e a temperatura baixou drasticamente. O psicológico pesou e: Meu Deus!!! Era o primeiro dia!
     Foi quando se manifestou do nada o lado brilhante e instintivo que alguns montanhistas têm. Lembro até hoje, tínhamos pouca visibilidade, o GPS não dava o sentido correto da trilha, andando em gangorra com as mochilas cada vez mais pesadas e não encontrávamos a trilha certa. Então segue  um minuto de silêncio...
     O Papael, praticamente possuído vira para a sua esquerda, pronuncia um estrondoso "Chega!!!",  abre 3 metros de quiçaça e cai exatamente na trilha, em frente à fita que claramente indicava que ali era a crista do Caratuva. Algo que considerei praticamente sobrenatural dada a altura que já havíamos percorrido desorientados pelos rios.
     Descemos como um raio por ela, extremamente fechada tornou-se lúcida ao sairmos do bosque e ficarmos na região tapeteada por caratuvas, por onde a trilha se desenha até a entrada do A1.
     Mas não pense que a pernada foi pouca. Acampamos já era tarde. A “perdida” havia desmotivado psicologicamente o grupo. Lembro que a janta foi o que nos motivou e ao dormir o céu deu sua deixa, transpondo suas nuvens e abrindo-nos as estrelas em uma lua minguante daquelas que não se esquece. A serenidade do Adilson foi importante naquele dia, mostrou estar muito mais centrado e calmo ante o desacerto que tínhamos enfrentado. A noite estava quente e bivaquei na porta da barraca, foi uma noite excelente para um dia que havia nos torturado.
Comida de Astronauta. Feliz dia de Cosme e Damião!
     O segundo dia foi decisivo - Tivemos a lucidez de que deveríamos ser rápidos ou não teríamos como terminar - nossas diferenças não eram mais úteis. O Papael assumiu o comando da caminhada e democraticamente decidíamos juntos os caminhos.
     Praticamente correndo, assustando os turistas do feriado, fomos em direção ao PP logo cedo. Chegamos rápido e tivemos nosso momento de prece e zombaria. Dançando Moon Walk no Cume enquanto o sol secava a roupa que a neblina da noite havia detonado. O desgaste já era um vilão. Para rimar com vilão descemos o União, sentido Ibitirati.
Moon Walk no PP
     Abismos lindos nos seguiam e em pouco mais de uma hora estávamos no cume sagrado do irmão pouco frequentado do Pico Paraná. Em minha opinião o melhor momento que tivemos em toda a Trip, um pedaço de manhã no Ibitirati.
O Segredo das paredes do Ibitiraquire Broken Montain
     Descemos como aquela criança que guarda seus brinquedos e retornamos para o A1. Dando aquela olhadinha para o Morro dos Camelos, que estavam nos planos, mas não tinham espaço apenas em 4 dias.
Discoporto
     Chegamos relativamente cedo ao A1, onde nos calçamos das pesadas mochilas e partimos ao local do nosso segundo acampamento e nosso sexto cume, o majestoso planalto do Ibitiraquire: Itapiroca. Dormimos no que se consistiu em uma noite fechada pela neblina, no entanto gentil com relação à temperatura. Então um dos destaques daquela trip fez diferença: tínhamos muita comida enterrada!
Um fato que mostrou muito que Deus estava ao nosso lado foi que, quase no cume, alguns poucos metros mesmo, vimos um rapaz com um galão de 5 litros na mão. Perguntamos como quem não quer nada se ele tinha água sobrando para nos doar. Ele gentilmente nos ofereceu o galão cheio e inteiro. A ironia foi que ele falou com uma veracidade tão inquestionável, que nos fez acreditar que aquele galão tinha sido levado por ele lá para cima.
Sexto Cume : Itapiroca

     Quando fomos desenterrar a comida, pra nossa surpresa: haviam encontrado nossa água (sim, era o galão do cara: safadheeenho!), mas não haviam descoberto, ao lado, por muita sorte, nossa comida, pois a urna em que ela estava era preta e se confundiu com o solo. Huuuu... Mais sorte que juízo.
     Comemos como reis naquela noite. Tínhamos muito mais comida do que era necessário e foi exatamente isso que nos deu capacidade de prosseguir muito mais recuperados do que era previsto.
Não lembro quando foi, mas nesse intervalo até o Itapiroca decidimos que não seria possível fazer o caminho até o Ciririca por cima, pois estaríamos muito mais pesados quando pegássemos a comida enterrada no Cerro Verde. Mas nosso combinado era que chegássemos no Ciririca. Só assim a travessia teria o sentido inicial.
     Quando estávamos indo ao Cerro Verde - o Papael escrevendo sempre nas caixas de cume com seu tradicional folheto/adesivo do panda - decidimos batizar a Trip, e por coincidência, naquele momento eu pensava que nosso rastro pelo Ibitiraquire era em formato de um triangulo. Sugeri de imediato: Travessia Triangular do Ibitiraquire e unanimemente todos gostaram. Um pouco a frente, quando vimos que as pontas do triângulo seriam o Ferraria, o Ibitirati e o Agudos, decidimos adjetivar o nome dela para não confundir as coisas: Travessia Triangular Menor do Ibitiraquire. Dessa forma, o próprio batismo da primeira já nos desafiava para a próxima: A Travessia Triangular Maior.
     O tempo melhorou um pouco na tarde que pegamos a comida no Cerro Verde. Atacamos na sequência o Tucum, como parte da rota que desviaria o caminho por baixo. Levamos uma perdida ali que nos fez entender definitivamente que entrar mata à dentro por cima era uma péssima escolha e que havíamos acertado na escolha de ir por baixo. Ele foi nosso oitavo cume, e ali as variações de altimetria, somada ao cansaço dos dias, começou a pegar.
Acampamos no Camapuã, o que de brinde nos trazia o cume do Camacuã que foi visitado mais tarde. Assim sendo, já tínhamos 10 cumes até então. 13° ascensão.
Ceia de Pascoa no Camapuã
     A noite de acampamento foi a mais tensa de todas. Fomos surpreendidos por uma chuva que lembraremos por muito tempo. Dessa vez, sem gentilezas, a natureza nos agraciou com um frio que descontrolava o tremor do queixo. Cozinhar foi uma tarefa tensa e salvadora naquele momento.
O mestre cuca do sopão era o Papael, eu ficava com a atribuição de segurar o fogareiro dentro da barraca com a responsabilidade de evitar um incêndio. Foi praticamente uma cirurgia aquele prato de sopa. Ai veio o segundo problema, levar a sopa para a outra barraca, no meio da tempestade, que não daria trégua durante toda a madrugada.
     Não lembro agora se foi o Papa ou eu que acabou levando a "delicia delivery", mas eu lembro que no meio da noite a barraca dos caras estava sofrendo por conta do vento e uma lona mantida sobre ela evitava que o vento a levasse, e aqui não exagero em nada, por aí vocês já podem ter uma ideia da seriedade da situação.
     Eu tive um momento de “coragem”, sai da barraca com a roupa molhada e em um frio antártico cantando Raul Seixas enquanto tentava arrumar a lona para eles, o vento era tão forte que dava socos na lona e me puxavam junto, no auge dos meus 120 quilos de músculos definidos e torneados. Com cordas e o que era possível, travei a barraca deles contra o vento e os colegas sobreviveram, foi essa atitude de companheirismo, pela qual, em consonante opinião, salvou-se uma noite catastrófica, para apenas uma noite caótica. Mais tarde o mesmo companheirismo me foi retribuído em dobro.
     Até então, nossa maior preocupação parecia ser arrumar novas formas para zoar o Good Neto que, injuriado, começava a dar sinais de mau humor. Então, de tanto zoarmos o mau humor dele, ele desistiu do mesmo e começou com o tradicional e lazarento: Bom dia, Vietnã!!!!! Acordando até os urubus do Ibitiraquire.
Favela no Camapuã
     Por dentro a coisa era mais tensa. Sabíamos que adentraríamos rumo ao Ciririca com o trágico daquelas árvores que haviam caído em Janeiro e levado grande parte da trilha junto. Estávamos cansados e lacerados pelo esforço das ascensões ininterruptas. Porém, era hora de focar e partir.          Sabendo que seriamos tentados ao passar pelo cruzo que nos levaria novamente ao conforto de nossas casas mais rapidamente em um dia fechado.
     Nessa hora tivemos certeza de que éramos guerreiros de verdade e que nosso forte era a determinação. Demos as costas para aquele cruzo de perdedores, escondemos as cargueiras no mato e fomos, de ataque, e dando as costas para a vida social que podia ser escolhida naquele instante. Subimos com o vigor que ninguém compreende, mas dá sentido ao montanhismo. Éramos nós contra o Ciririca, já no 4° dia de subida, caminhada exaustiva, cansaço extremo e as piadas do Papael.
     As minhas dores já não eram suportáveis e creio que a partir da metade do trajeto o joelho parecia estar sendo perfurado por brasa, mas o corpo quente mantinha a cadência dos passo.
     Próximo à corda, marca do Ciririca, encontramos o "Power Ranger Branco" da trip, aquele personagem que aparece  do nada quanto a coisa  está realmente complicada: Eis que aparece nosso amigo Anderson EP. Estava simplesmente atacando o Ciririca na boa, após ter chovido e com o dia parcialmente nublado. Ai víamos que a montanha nos respeitava e abria os portões de seu castelo.
     Ele seguiu até o cume do Ciririca com nós 4.
Equipe inteira reunida
   
Porque fumaça pouco é piada
     Cansados e inacreditavelmente felizes por dentro, nos encantávamos com a paisagem da brava e respeitada montanha. Não importava a neblina, não importava nada. Livro de Cume assinado, registro feito. O K2 da Serra do Ibitiraquire era nosso!
Mas faltava sobreviver.
Inaugurando a Travessia Triangular Menor do Ibitiraquire
     Após o corpo esfriar, por ficarmos parados no cume, a dor rompeu o limite do tolerável. Desci como se o joelho fosse um inimigo ingrato por ter sido maltratado no caminho.
     Com ajuda dos companheiros e com os olhos lacrimejados de dor, do tipo que não é viadagem, chegávamos cada vez mais perto da fazenda que findaria a conquista da Travessia Triangular Menor. Começada meses antes e que tanto orgulho nos trazia, ia embora e permitia que voltássemos para nossas casas - pois nosso lar é a montanha - usufruir do controverso conforto que o trabalho social construiu ao longo da história.
Coelhinhos da Páscoa
     Onze cumes de respeito, quinze ascensões e o Sucesso era o combustível, enquanto a trilha de volta parecia nunca acabar.
     Anoitece e o uso das lanternas redobra a sapiência da exaustão e do interminável caminhar. Muitas horas de caminhada, quatro dias completos, quando farejamos o gramado da Fazenda da Bolinha - o latir dos cães vira música. O sorriso e o contentamento tomam conta do grupo.
     Abraçamos a felicidade e comemoramos como um grupo de soldados que voltava da guerra. Poucas forças, dois “sentimentos” contraditórios: A intensidade que apenas a alma sente da conquista e a tristeza da despedida dessa aventura que pretendo nunca mais esquecer.
     Anderson se despede do grupo, volta para o  seu "Megazord" e vai embora. Os outros Rangers seguem em direção à Fazenda Pico Paraná para resgatar o outro automóvel.
     No posto Tio Doca brindamos o feito. Tomamos banho por lá, e água quente tão valorosa não existe. O Adilson segue em direção à São Paulo, nós para Curitiba. E todos distantes estavam juntos em sentimento.
     Ali, verdadeiramente nasciam os Loucos do Ibitiraquire, que até então eram só um grupo no Facebook. Desconhecidos que a modernidade uniu, que até hoje se orgulham do feito a ponto de querer repetir inesgotáveis vezes a façanha, até que esse triângulo que atravessa a serra aumente, ou esse polígono de verdadeiros amigos cresça cada vez mais...

Texto: Fabio Sieg - Loucos do Ibitiraquire
Vem comigo, Tô vendo o caminho...

Altimetria

Marco da Alfa Crucis no vale do Caratuva

Trakinas

Adilson no Cume Verdadeiro do K-2 Paranaense

Vagalume do Ibitiraquire

Éramos 5!
Fênix em flexão - Ressurgindo das cinzas


sexta-feira, 24 de abril de 2015

“Projeto MARUMBI Completíssimo em 1 dia”

"Eternamente molhado, é um ótimo local para despencar em caso de poucos cuidados. Logo a frente, embora não tenham contato visual, sabem que seu próximo destino está logo à frente, tal qual um monstro contorcido, pronto para engolir qualquer um que ouse desafiá-lo."

-- O Pré- Projeto – (O início de tudo!)

          Em 1973, tendo em vista a dissolução de dois grupos antagônicos, os Bebuns e Mamuca (Marumbi, Mulher e Cachaça), alguns servindo o exército, outros casando, estudando, dando, ou coisa que o valha, sobraram eu da turma do MAMUCA e outro do Clube dos Bebuns. Para não morrer, montamos uma sociedade e comprando um terreno, construímos uma casa onde fomos felizes para sempre enquanto durou.
         Durante a semana fomos respeitáveis trabalhadores em Curitiba e nos sábados domingos, feriados, férias, o Marumbi era nossa praia. Passagem de ano com direito a guerra de foguetes contra nossos vizinhos, festas de São João com grande fogueira, semana de carnaval com proibição de falar no assunto, eleições para prefeito da República Livre do Marumby, que depois virou monarquia; e entre uma trepada e outra, também trepávamos nos morros, ou era ao contrário não lembro.
         Muita gente festando, pois como o poema, nas horas de riso a casa está cheia e tem gente apinhada, cascateando alegrias. Em uma semana levávamos a família, as namoradas; aquilo tudo era um santuário. Na semana seguinte era a da festa e das meninadas.
         Mas chegaram as paixões, os nenéns, as responsabilidades. Tudo virou família. E foi bom enquanto durou. Tive que pensar no futuro e arrumei um emprego decente que me impedia de encontrar os amigos, pois minhas folgas eram só durante a semana. Acabei deixando de ir, pois se os dias passados sozinho na serra são lindos, as noites são cheias de fantasmas, (risos). Os anos de zoeira acabaram. Vieram as caras-metades, os filhos, a idade. Do original restou a fachada.
         A casa está lá, e um dia voltei; não só, mas sim com amigos.  (Roberto M. Carneiro – O Robertinho)

-- O início de uma utopia—

        Em 27 de Junho de 2010, três montanhistas: Luiz Suzuki, Roberto Carneiro e Rafael Kozechen (Papael), resolveram ir ao Marumbi fazer o Conjunto (subir a trilha branca ao Olimpo (1539 m) e descer pela vermelha-noroeste-) com um diferencial, iriam realizar um desvio para o Abrolhos (1200 m). Para maiores informações vide vídeo (http://www.youtube.com/watch?v=OhF-1I_IHV8 )
       Em 06 de Novembro do mesmo ano, encaminharam-se novamente ao Marumbi para, dessa vez, fazer o caminho inverso e fazer um desvio para a Esfinge. Para maiores informações vide vídeo (http://www.youtube.com/watch?v=AGrkj3gshDU ).
       Na descida, entre uma parede e outra, olharam para os lados e perceberam que havia muita coisa para conhecer: Torre dos Sinos, Facãozinho e Boa Vista.
        Entre uma conversa e outra surgiu a ideia de fazer o Conjunto Marumbi Completíssimo, andando por todos os 9 cumes que compõem o conjunto em 2 dias, porém, como o acampamento nos cumes do Marumbi se faz proibido, ponderaram que deveriam fazer essa “pernada” em apenas 1 dia. Coisa pesada!
         O tempo foi passando e outros sonhos foram sendo conquistados, Janela da Conceição, travessia do Ciririca “por cima”, etc....; e os laços de amizade entre Robertinho e Papael foram se estreitando.
        Com Marumbi marcado, Roberto e Papael seguem no dia 03 de Março de 2012 para o local e, devido à chuva, abortam a subida que tinham marcado. Com uma breve estiada, seguem pelo Parque visitando Pedra Lascada, túnel do Rochedinho, Viaduto do Carvalho e Ponte São João, no retorno, sobem pelo túnel do Rochedo e atingem o cume do Rochedinho; do alto, marcam que a Completíssima deveria passar pela Pedra Lascada e Rochedinho pelo túnel, descendo pelo outro lado, encontrando com a frontal do Olimpo. Em conversas posteriores, abandonaram a ideia, pois 30 minutos poderia fazer falta ao final do projeto, pelo suposto avançado da hora. Portanto, subiriam e desceriam o Rochedinho (1º cume) pelo caminho normal, encontrando e seguindo pela frontal do Olimpo até o desvio do Facãozinho.
         Em 14 de Abril de 2012 a Torre dos Sinos era o objetivo, torre separada de todas as outras, quase uma ovelha negra, mitológica, mágica, difícil! Ao galgar a crista que dá acesso a esse outeiro, percebem que pouco se usa a trilha dessa montanha tão inóspita.  A dupla errou a entrada por apenas 5 metros, encontrando a picada minutos depois e logo passam pela mítica “Passagem da Torre”, que haviam lido em relatos e pesquisas, pois os mesmos não utilizam GPS (Global Position Satélite). Depois que atingiram o ápice rochoso pensam:  Agora falta pouco!
          Obstinados, semanas depois Roberto faz a troca para um veículo com tração 4x4, o que asseguraria a chegada a Estação Eng. Lange bem mais descansados do que se fossem a pé a partir de Prainhas.

- O Projeto –

          Enfim, após preparativos normais, na tarde de 04 de Maio de 2012, uma sexta-feira, a dupla parte para o Marumbi, mesmo com a previsão do tempo nada favorável. Enfrentam a péssima manutenção da Estrada de Prainhas, diante da infinidade de valetas, com tamanha profundidade, que por vezes pensavam que não conseguiriam chegar motorizados a Estação de Engenheiro Lange. Com esforço, alcançam o ponto final para veículos e seguem sem problemas, porem embaixo de chuva, a Estação Marumbi (485m).
          Acordam as 03:15 da manhã para o início da caminhada e após um café reforçado, mas com 15 minutos de atraso, as 04:15 saem em direção ao Rochedinho (625m). Avançam devagar devido a escuridão, num breu misturado com neblina que inspirava uma sensação assustadora. A passos certeiros, subiram ao primeiro cume da investida e cumprimentam-se com as mãos calcadas uma a outra, em sinal de amizade e confiança, ritual esse que se seguiriam pelo resto do dia a cada objetivo alcançado. Sem demora, retornam ao cruzo da Frontal, chegando nesse ponto as 5:00 hs.
          Realizam o desvio do Facãozinho minutos depois e, sempre subindo, encontrando-se com o alvorecer. Percebem, com o corpo já totalmente encharcado, as paredes gigantes da colossal montanha crescendo do lado esquerdo, e com as águas raivosas do rio Taquaral rugindo logo abaixo. As 07:00 da manhã se cumprimentam com mútuo aperto de mãos, selando a chegada ao segundo cume do dia: Facãozinho (1.100m). Fotografia apenas para registro, pois, como previsto, o céu estava totalmente nublado e a mata molhada.
         Descem a encosta e contentam-se ao cruzar o Vale dos Ovos em menos de 15 minutos e verem que se encontram na Picada do Pau do Maneco. Fazem breve descanso em um riacho, captando água para todo o restante do trajeto e preparam-se para a subida que antecede o cume do Boa Vista.

          Os montanhistas alcançam o campo de altitude e a relva dourada que se esparge pelo relevo abobadado a 1491 m. que marca o cimo do Boa Vista pontualmente as 09:05 hs e realizam a primeira grande parada para o café. Cumprimentam-se e descansam, 40 minutos depois, com os corpos tremendo de frio, saem em direção ao vale que leva ao bloco rochoso do Olimpo.
          Chegam sem problemas a Pedra da Lagartixa, porém, a partir daí o caminho segue um pouco mais dificultoso devido aos lances de rocha que se seguem e com a mata cerrada impedindo o avanço. Alguns minutos mais tarde, as 11:00 hs se veem no ponto sublime do maciço rochoso do Conjunto Marumbi (1539m.). Respirando um pouco mais aliviados, veem que ainda estão 45 minutos adiantados do que o plano inicial. Descansam com o olhar perdidos para os campos e outros píncaros que nesse dia se escondiam por entre as alvas brumas que insistiam em velar o andamento dos aventureiros; comem rapidamente e, após cumprimentos, fotos e registro no livro de cume, partem para o cume largo do Gigante (1487m). 


Passam sem problemas e seguem observando atentamente para não perderem a entrada da Torre dos Sinos. Perder a entrada de qualquer um dos objetivos seria perder preciosos minutos que fariam falta no derradeiro objetivo, que seria alcançado logo mais tarde.
          Entram à esquerda pelo Desvio da Torre e sem titubear, seguem pelo caminho pelo qual andaram 1 mês e meio antes. Logo alcançam a Passagem da Torre: Esta peculiar montanha está separada por todos os lados das demais. Entre a Torre e o Abrolhos se encontra o Desfiladeiro da Catedral e entre a Torre e o Gigante fica o Desfiladeiro dos Sinos. Uma passagem estreita, que não dá chance para vacilos; e do outro lado segue uma parede íngreme que também não deixa margem para titubeios. Minutos a frente e já estão a pouca distância do cume. Às 14:10hs cumprimentam-se novamente, no alto da pedra onde jaz duas pequenas traves de ferro, usadas para estaquear uma antiga caixa de cume, que marcava o cume da Torre dos Sinos.

Os aventureiros fazer o caminho de retorno, galgando as mesmas centenas de metros que andaram minutos antes, enfrentando a parede e a subida da trilha, chegando rapidamente até o cruzo da trilha principal.
Agora já com o terreno dominado, porém com o cansaço dominando-os, desenvolvem até o cume de mais um píncaro, atingindo as 15:10hs o 7º cume da empreitada. Mais um aperto de mãos na cabeça do felino do Marumbi, a Ponta do Tigre.  
Realizam a descida, sem visual, até o apartamento nº11 e dali realizam o desvio para a Esfinge. Comentam se deveriam deixar esse cume de fora. Roberto corajosamente comenta: “Número 7 é número de mentiroso! Vamos colocar os cumes restantes no bolso!"
Sobem sua parede escorregadia, passando ao lado da enorme greta que os ladeia. Envolto entre as nuvens, realizam seu ritual habitual às 15:48 hs na mítica Esfinge. Agora era hora de cuidados redobrados, pois o cansaço e o frio tomavam conta nos corpos açoitados dos dois montanhistas.
Desenvolvem a descida da parede da Esfinge vagarosamente e, uma vez mais no Apartamento nº11, entram no Desfiladeiro das Lágrimas. Eternamente molhado, é um ótimo local para despencar em caso de poucos cuidados. Logo a frente, embora não tenham contato visual, sabem que seu próximo destino está logo à frente, tal qual um monstro contorcido, pronto para engolir qualquer um que ouse desafiá-lo.
Já cambaleantes, alcançam o cruzo que os levaria para o píncaro do outeiro preferido de Roberto. Param, ponderam, argumentam, decidem!
Nesse trecho, estava marcado um longo descanso de duas horas, antes de cruzar morro acima. Seria hora de recarregar as energias, sono, hidratação, de últimos acertos.  Porém, Roberto comenta com Papael que já não tinha forças nas pernas, se ousassem parar pelo tempo estimado, ele não levantaria mais, porém, subiria nem que fosse se arrastando até o cume. O Abrolhos estava esperando-os.
E lá vão, com bravura, com os corpos em frangalhos, subindo a escarpada trilha para o "preferido". Roberto, puxando o peso do corpo apenas com os braços pois suas pernas pouco podiam ajudar, e Papael com palavras de incentivo, enchem o cume do Abrolhos com salvas e um abraço destemido, pisando às 18:20 hs os 1.200m do 9º cume, o Abrolhos.
Descem novamente ao cruzo, e agora mais tranquilos, fazer o retorno da bem conhecida trilha. Realizam a descida de forma contida, porém, com surpresa, veem que alcançaram as pedras do calçamento que marcam o início da Vila com menos de 2 horas de descida.
Com as roupas sujas e encharcadas, corpos surrados porém com sorrisos nos lábios; chegam ao ponto de partida, pontualmente às 20:15hs, coroando com louros as 16 horas que andaram. Cumprimentam-se, completando o ritual que haviam feito durante cada etapa, as mãos se tocaram mais uma derradeira vez, selando para a eternidade sua amizade. Brindam, sorriem, têm consigo que realizaram um grande feito. Têm consigo que combateram o bom combate e firmaram de vez a sua parceria por todo o sempre.
Talvez alguns montanhistas ou alguns atletas atuais, incautos, dirão que podem fazer esse trecho em metade do tempo ou menos. Alguns, quando a dupla comenta sobre a “Completíssima” afirmam: Mas eu fiz em 12 horas! E os protagonistas os respondem: “Todos os 9?” e esperam o olhar de dúvida que sempre surge na face dos seus inquisidores.
Desculpe se soar de forma arrogante, porém vou correr o risco:
Talvez faça... Duvido!
Porque, naquele fatídico ano de 2012, Roberto estava comemorando a juventude de seus 61 anos de idade.
E então, topa o desafio?

quinta-feira, 9 de abril de 2015

O Canivete do Marumbi

"Quando estávamos procurando a trilha, vi que procurei uns 20 metros antes da entrada correta, Roberto quase entrou nela mas nem iria perceber, pois ali não se vê que é uma trilha. Não há rastro. Realmente, quem sabe, sabe. Quem não sabe fica chupando dedo ou mete as caras e, lógico, pode se dar mal."

 Agora falta pouco... 
          Sempre quando subimos uma montanha e o cansaço aperta, essa máxima vem em nossas mentes. 
Porém, dessa vez, esse “falta pouco” não se referia apenas a chegada ao cume do Facãozinho (1.100m), mas sim à visita aos cumes que compõem o Conjunto Marumbi, composto por 9 montanhas bem distintas e com altitudes variantes entre 625m  a 1.539m.  Para mim e meu inseparável amigo Roberto faltavam apenas duas.  
          Nas vésperas do feriado de Finados conversamos e decidimos que iriamos atacar o Facãozinho e, se desse tempo, ir até  o Boa Vista.
Seguimos, 02 de Novembro de 2011 para o Marumbi. 
          O problema é que a trilha  de acesso está fechada  mais de 30 anos. Roberto a conhece de tempo passados, onde me contava que a interdição, 30 anos atrás, era extremamente necessária. Meu amigo marumbinista, contava-me que mais da metade do percurso era feita com contato visual direto com o restante do conjunto e a subida era feita através de uma valeta de barro vermelho, extremadamente lisa, evidenciando em suas encostas a fragilidade em que se encontrava a trilha. Relatava também, que o cume era amplo e desmatado, onde quem chegava ao seu ápice, ficava “lagarteando” por ali, curtindo o visual .  
          Saímos da Estação Marumbi um pouco mais de 10:00 da manhã, dois anos antes estávamos olhando o mesmo Marumbi do cume da Torre da Prata (1502m). Porém, com a trilha proibida  três décadas, o mato tomou conta e a entrada estava, é claro, escondida. Partimos com os croquis nas mãoscontando os passos para achar a tal entrada do cruzo. Subindo barrancos, cruzando rios, escorregando ribanceira abaixo e nada. Procura aqui e procura ali, achamos uma referência, perdemos mais uma meia hora para conferir se estávamos corretos. Andando alguns metros a frente e nada de trilha. Decidimos então que era hora de subir a encosta bodejando um vale. Com a encosta íngreme, rasgando mato no peito e quebrando algumas taquaras secas, dei graças a Deus por não estar subindo de cargueira.  
          Sem achar a entrada correta da trilha, fomos pelo rumo. Estava meio apreensivo pois estava indo muito para a esquerda e pensava algumas vezes em corrigir a rota para não andar em círculos, porém como estava  indo para o rumo do Facãozinho que fica mesmo à esquerda e com o Roberto me alertando para seguir sempre pela crista, com dois vales um de cada lado, fui seguindo em frente. Depois de alguns consideráveis minutos, quase se fazendo hora, ia desviar o caminho  um pouco para a direita mas uma árvore caída me fez deixar tomar essa decisão do outro lado dela. Logo depois de passa-la pela esquerda, eis que chegamos a uma trilha, muito pouco batida. Averiguamos e tivemos a certeza de que se tratava mesmo de uma trilha e não de um caminho de água.  Fomos andando e logo aparece os sinais do caminho certo: Uma sacolinha branca,  uma batida de facão e para tirar a prova, a fitação laranja. Sempre subindo, fomos ganhando altitude e, após uma janela, começamos a entrar em uma mata mais rala e dura, cheia de taquaripoca. Alias, esses ramos já eram o terror nas décadas de 40 e 50, pois há relatos de Rudolf Stamm reclamando do crescimento delas em 1 ou 2 meses, obrigando-os a fazer uma retificação e manutenção na trilha constantemente. Com o ganho de altitude verificamos também a trilha um pouco erodida naturalmente mas nada que justifique a constância na proibição de uso dessa trilha. Alias, aquilo tudo esta uma quiçassa sem fim.  
          O lugar que é  "usado" como cume, na verdade não passa de um local improvisado e apertado, logo abaixo do cume verdadeiro. Daqui, somente de pé, se avista o restante do Conjunto Marumbi, o Rochedinho, a linha férrea, o Pico do Diabo, a Estação e, é claro, o grande gramado do Marumbi,  que onde se enxerga de praticamente qualquer lugar do conjunto, tamanha a falta de mata do local, sem falar em construções com suas cores chamativas, destoando totalmente do ambiente, o amplo gramado é visto ao longe. Va bene! 
          O caminho que se segue vai em direção ao Vale dos Ovos e se encontra como a trilha “Pau do Maneco” e seguem juntas ate os campos do Boa Vista. Subimos em duas árvores para enxergar alguma coisa, mas como dito acima, o mato tomou conta de tudo e tivemos apenas uma noção do que nos esperaria a frente. Chegar ate ali sem facão foi um tormento e seguir por ali, naquela hora, seria tremenda idiotice. Roberto e eu estávamos satisfeitos com a transgressão daquele dia e resolvemos voltar daquele ponto mesmo. Descemos rápido e identificamos o ponto onde tínhamos interceptado a trilha verdadeira. Desse ponto até a entrada da variante não passou mais que 10 minutos. Realmente tínhamos dado uma volta considerável pelo outro lado do vale.  
           Quando estávamos procurando a trilha, vi que procurei uns 20 metros antes da entrada correta, Roberto quase entrou nela mas nem iria perceber, pois ali não se vê que é uma trilha. Não há rastro. Realmente, quem sabe, sabe. Quem não sabe fica chupando dedo ou mete as caras e, lógico, pode se dar mal. 
          Dessa vez, ou contrário da forma com que escrevo, não tem dicas, nem receita, nem jeito de fazer ou chegar lá. Vou contrariar as expectativas. Vou ser, como no Facãozinho, um transgressor. 
Facãozinho, assim como todo o restante do Conjunto Marumbi, é sagrado. Merece ser desbravado. 
trilheiro que anda por lá tem que mostrar seu valor e mostrar de que é capaz. Portanto, dessa vez não vou dizer como se faz para chegar lá. Seria, deveras, uma falta de respeito. 
          Mas, como sempre, vou alertar: Não suba o Facãozinho achando que ira achá-lo como canivete, pode ser que você encontre um grande e afiado machado à sua frente!